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sábado, 7 de junho de 2014

UM AMOR QUE SE MANIFESTA NA AUSÊNCIA



Escrevi no texto anterior que existo porque o outro existe e que me constituo na diferença. Sou professor porque há alguém que é aluno, sou pai porque há alguém que é filho, sou eu porque sou diferente de você e assim por diante. Em alguns aspectos me constituo na diferença e em outros sou dependente da existência outro para existir.
Nessa linha de raciocínio, para mim, Deus só é Deus porque há alguém que não é Deus, ou melhor, consigo saber o que é Deus, porque conheço alguém que não é Deus.
Consigo imaginar a sua perfeição por oposição à imperfeição que conheço. Penso em um Deus de bondade e o almejo assim, porque a maldade me incomoda.   Se não conhecêssemos os contrários não teríamos  como definir bondade, perfeição, professor, pai, etc.
Imaginemos um professor dos anos iniciais que,  muito solicito em definir para o seus o que é um número natural, dissesse aos alunos: “número natural é aquele que serve para contar”. Um garoto ativo perguntaria ao pai, após a aula: “tem número que não serve para contar?”.
 Não conhecendo outros conjuntos numéricos essa definição não faria o menor sentido para o aluno, embora fizesse para o professor.
 Supomos ser possível existir Deus sem que exista ser humano, nas não é possível explicar o que é ser Deus sem esse não ser. Entendemos Deus como algo que não é humano. Confesso que tento imaginar que seria um criador sem criaturas, mas não consigo.
 Para escapar dessa discussão Deus diz que Ele é Aquele que É. “EU SOU” disse a Moisés (Êx 3: 14). Eu Sou aquele que é, cuja existência independente da sua, teria dito Ele a Moisés.
Nisso Deus é diferente de mim. Enquanto eu sou porque não sou, Ele é porque é. Enquanto eu me constituo na diferença  Ele diz se constituir por si mesmo. Aí está algo que não consigo compreender, que escapa ao meu nível intelectual. Imagino que seja um dos mais complexos mistérios da fé cristã. Não consigo imaginar um criador sem criatura, um pai sem filho, um governador sem governados. São minhas limitações.
Talvez Ele seja criador de Si mesmo. Aquele que se basta a si mesmo, que se mede por si mesmo. Não consigo penetrar nesse mistério.
Para nós, humanos, dizer que eu sou do meu tamanho parece óbvio demais para ser aceito como definição de tamanho. Dizer que sou igual a mim, que me pareço comigo mesmo, parece piada que se faz entre amigos. Quando Deus diz que É como É me deixa confuso.
Posso afirmar que sou porque não sou. Sou masculino porque não sou feminino, sou humano porque não sou Deus e nem irracional, sou idoso porque não sou jovem, e assim por diante. Essa concepção de mim mesmo traz implicações importantes tais como: sou responsável pelos meus atos porque não sou controlado. Sou livre porque não me permiti ser escravo. Sou responsável pelo que falo e escrevo porque não há ninguém ditando para mim as palavras que escrevo.
Pensemos agora na hipótese absurda de Deus estar ditando em meus ouvidos as palavras que escrevo. Nesse caso, eu não seria o autor, não seria o artista da palavra, seria uma máquina de escrever. O autor seria Ele. Se os profetas tivessem simplesmente repetido o que Deus lhes dissera, seriam simples papagaios ou máquinas falantes.
Uma mãe que recebesse orientações diretas de Deus para educar os seus filhos não seria mãe no sentido pleno da palavra. Seria uma matriz, uma geradora de filhos.
A plenitude humana somente é alcançada quando assumimos a responsabilidade por aquilo que fazemos. A plenitude está na liberdade, na ausência de imposições.
Nesse ponto faço uma bifurcação no meu arrazoado. Aponto para duas conclusões distintas nessas considerações.
 A primeira é que Deus, em Seu amor para com o ser humano, precisa se ausentar para que possamos crescer, para que possamos desenvolver nossas potencialidades. Nosso crescimento físico, moral e ético depende de enfrentamentos dos problemas que surgem e frequentes tomadas de decisão. Dessa forma, diferentemente do que pensamos, por mais estranho e paradoxal que pareça, o amor de Deus se manifesta na Sua ausência, a sabedoria de Deus Se revela no Seu silêncio diante das nossas orações (porque estimula a buscar saídas, criar soluções), o Seu cuidado se revela na autonomia que nos concede para agir (porque produz responsabilidade).
Preciso ser e, para ser, preciso não ser. Isso tem implicações tais como: preciso aprender a ser responsável e para isso é preciso que não seja sempre protegido. Preciso desenvolver a minha identidade pessoal, ser diferente dos outros, ter minhas próprias realizações, mas para isso preciso não ser controlado,  não ser assistido a todo instante.
As mães excessivamente cuidadosas criam os "filhinhos da mamãe" e os professores tradicionais produzem  alunos que não pensam. Para ser humano preciso não ser uma cópia de Deus e Ele sabe disso.
A segunda bifurcação nessa estrada que esbocei é uma crítica ao modo como se comportam certos pregadores de determinadas denominações religiosas que tenho visitado. Partem do pressuposto de que foram inspirados por Deus para proferir o sermão. Consideram-se isentos de erro no que falam, isto é, posicionam-se acima da critica dos seus ouvintes porque, dizem eles, receberam e transmitem a palavra  de Deus. O problema dessa perspectiva é que os pregadores não crescem como pessoa e nem como expositores de uma mensagem. Se estão assessorados por Deus, então não precisam procurar melhora na sua exposição. Se representam  a Deus, então não são humanos normais, são dotados de autoridade sobre-humana. Tornam-se extraterrestres ao apresentar o seu discurso perante a congregação.
Nesses casos, suponho que Deus não confia neles, pois, se confiasse os deixaria errar para aprender. Suponho que Deus não os ama, pois, se os amasse dar-lhes-ia-autonomia. Se os amasse faria com eles o que fez com Adão e com Caim. Daria liberdade de escolha. Esse é o modo divino de amar: dar liberdade e responsabilizar.
O mais provável, porém, é que não queiram ser livres, não se sintam capazes de enfrentar a crítica, não sejam preparados para usar a autonomia, não sejam pessoas crescidas.
Nova Alvorada do Sul, 05 de junho de 2014.
Antonio Sales