Na hinódia cristã há alguns hinos clássicos que merecem uma análise especial. Parece que o autor da letra passava por uma experiência ímpar em sua vida e conseguiu verbalizá-la no poema. É possível sentir a angústia que lhe oprimia a alma e o seu desejo de “gritar” por socorro.
A questão que fica é se é uma letra apropriada para ser usada como canto congregacional, indistintamente. Qual a mensagem que ele transmite ao ouvinte? Que lição ensina a quem não está afeito a reflexões sobre a vida cristã, isto é, a quem pauta a sua vida e até mesmo a sua cultura por frases isoladas?
Alguém poderia perguntar: mas, e quem são os que constituem a sua “sabedoria”por frases isoladas?
Qualquer pessoa medianamente culta sabe do que estou falando. Sabe que não são poucos os pregadores que fundamentam as suas doutrinas em textos isolados do contexto e nem se dão ao trabalho de recontextualizá-los. Nem os colocam no contetxo original e nem criam outro contexto para eles. Simplesmente citam-nos e pronto. Há muitos que fundamentam até os seus julgamentos sobre comportamentos pessoais com base em fatos isolados. Inúmeras pessoas, até supostos intelectuais, fazem compilação pura e simples, anexando textos, originalmente isolados, um ao outro sem qualquer conexão que explique porque está sendo feita aquela junção.
Eu já fiz isso por muito tempo e conheço centenas que norteiam a vida por frases isoladas, elaboram sermões com textos descontextualizados, julgam tendo como critério fatos ou frases isoladas. Muitos dos que conheço, e que fazem isso, julgam-se intelectuais e são considerados como tais pelos seu pares. Não é uma crítica, é uma constatação. Já fiz coro com eles.
Esse é o perigo de se usar qualquer canto congregacional sem uma análise da mensagem que se quer transmitir e sem um esclarecimento ao público ouvinte.
Um hino que conheço e que pertence a essa categoria tem como refrão: “Sou peregrino e forasteiro, uma noite aqui e nada mais”. Esse hino que foi escrito por MBS Dana uma senhora que viveu no século XIX (1810-1883) tem uma melodia muito bonita. É um melodia tradicional italiana que mantém a alma do adorador em suspense. A letra fala de esperança também, porém uma esperança por contraste. Isto é, fala do andar “errante” no “escuro” do munto e da luz que existe no céu.
Que andar errante é esse? Enveredou ela pelo mundo das drogas e da prostituição? Viveu no escuro da ilegalidade e agora se volta para luz do evangelho cheia de esperança? Foi uma esposa maltratada pelo esposo ou uma jovem explorada pelo pai que ansiava por liberdade? Sua luz seria um milagre que a arrebatasse da vida que levava? Era portatora de uma doença e desejava a cura definitiva? Qual era a sua angústia, o escuro da sua vida? Qual era a luz que ela ansiava?
A frase do refrão é preocupante quando pronunciada isoladamente. O que faz um forasteiro? O que deixa ele como herança? Se esse forasteiro for, além disso, um peregrino qual a sua lição de vida?
Embora forasteiro e peregrino possam ser tomados como ternos sinônimos estou admitindo uma certa diferença sutil entre eles. O forasteiro, na minha concepção, é qualquer passante. Um peregrino é alguém que deixou as suas origens e executa um trajeto bem definido, um caminhante com um motivo especial; alguém que caminha para algum lugar. Segundo a Wikipédia “A peregrinação tem, assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada pessoa que a executa”.
Mas o que faz um peregrino em benefício do lugar por onde passa? Nada.
Ele não semeia, não cultiva uma planta, não cava uma cisterna, não constrói uma casa, não apóia uma escola, não abriga uma criança, não dá esperança uma jovem e não zela pelo local. Seu olhar está no “além”. Passará por aqui uma única vez, pedirá ajuda, pernoitará ao relento ou em um abrigo improvisado e seguirá em frente sem deixar herança cultural, emocional ou material. Ele não cria vínculos por onde passa.
Se sou apenas um peregrino aqui nesta terra, se passarei apenas uma “noite”(minha vida é uma noite?) o que me interessa fazer por este lugar? Estabelecerei uma relação ecológica? Estabelecerei uma relação afetiva com o contexto social onde vivo? Serei sempre um “estranho no ninho”? Terei projetos sociais? Para que tudo isso se passarei apenas um “noite”? Um “noite” cheia de medo, “desabrigado”? Todos deverão ser sempre estranhos para mim?
É essa a vida que quero para mim? Deve ser essa a minha pregação para os fiéis? Será que de fato devo ser um peregrino?
Tenho ouvido de cidades onde por muito tempo havia vandalismo contra pontos de ônibus, telefones públicos, etc. Morei em uma delas e vivenciei isso por algum tempo. Pela experiência que tive e pelo que me contaram sobre outras cidades a minha conjetura (não sou sociólogo) é que essas cidades eram pontos de passagem, isto é, as pessoas saíam de suas terras em busca de algo melhor em outro lugar e essas cidades ficavam no “caminho”. Por acaso, ou por falta de recursos, estabeleciam residência nela, mas pensavam em um dia prosseguir. Seus filhos não era filhos dessa cidade, logo, não tinham compromisso com ela. Em alguns casos essas cidades eram apenas o lugar de buscar recursos para a família que ficara para trás e, por alguma razão (muitas vezes não planejada), estabeleciam residência ali e constituíam família. Também nesses casos, os seus filhos não eram filhos daquela cidade.O passante não cuida, não tem projetos, não investe no local.
Alguns cristãos tornam-se peregrinos até na igreja. Não investem nela, não apóiam novos projetos e não cultivam amizades.
E eu? Sou peregrino e forasteiro ou sou um residente responsável que constrói uma ponte para o futuro?
Nova Andradina, 24/09/2011.
Antonio Sales profesales@hotmail.com