Não gosto muito de escrever sobre música. Não quero dar a impressão de que entrei na onda de supervalorizar o papel dela na adoração. Vejo-a apenas como um fator constituinte do culto. Minha preocupação é com a educação, isto é, com os valores que são transmitidos pela igreja, pela música, pelo sermão e por todos os componentes da vida religiosa em geral.
No texto intitulado “O cristão: forasteiro ou residente” questionei a contribuição educativa de um hino clássico e hoje quero questionar a contribuição de uma música contemporânea.
O refrão ou a parte mais repetida da música diz: “Pode cair o mundo estou em paz”. Ela foi composta por dois nomes conhecidos e respeitados pela competência técnica e teológica e também pelo bom gosto na composição de suas músicas. Por essas razões suas músicas fazem muito sucesso entre os jovens.
Lendo a letra dessa música percebe-se que os autores tinham a intenção de reforçar a necessidade de se confiar em Deus. A minha preocupação está com a escolha da parte onde recai a maior ênfase: “Pode cair o mundo estou em paz”.
Como se sabe essa é a parte de uma música que mais se repete e, normalmente, é a que fica gravada na memória dos ouvintes; daqueles que “cantam no banheiro”. Normalmente esse “cantor” grava somente essa parte que acaba sendo repetida dezenas de vezes e a frase fica fora do contexto. É com base nesse fator que teço algumas considerações à referida música e me atrevo em dizer que ela é, pedagogicamente, imprópria para ser usada em reuniões de jovens ou no culto.
Uso raciocinar tomando por base fatos concretos. Quando estes não existem crio um, hipoteticamente. Neste caso imaginei um dentista dormindo tranquilamente quando, lá pelas tantas da madrugada, o telefone toca. Ao atendê-lo ouve do outro lado da linha a minha voz dizendo: “ Doutor, meu filho acordou com uma lancinante dor de dente. Está com aproximadamente uma hora que vimos tentando, com os nossos próprios recursos, diminuir a intensidade da mesma para que se possa esperar o amanhecer do dia. Nossos recursos se esgotaram e ele está ficando desatinado de dor. Se eu levá-lo aí o senhor o socorrerá?”
Imagino agora o dentista respondendo: “deixe-o gritar de dor estou em paz”. Em outras palavras: como dentista eu e minha família estamos livres desse incômodo e vou dormir em paz.
Temo que seja esta a mensagem que ficará gravada na memória dos ouvintes desses “cantores” de segunda ordem. Temo que esteja sendo transmitido um valor não cristão: a acomodação diante da desgraça alheia. Que esteja sendo incentivado o cruzar dos barcos e sorrir diante da tão propalada miséria do mundo.
Alguém poderá questionar dizendo que como cristãos devemos mesmo ter paz em meio à “trovoada”. Tenho dúvidas. Será que devo ficar em paz se o meu vizinho está sendo atingido por algum “raio”?
Jesus chorou sobre Jerusalém (Mt 23:37) porque os seus habitantes rejeitaram todas as oportunidades que lhe foram oferecidas. O Mestre não ficou em paz enquanto a cidade corria risco de perdição. Deus, quando viu a humanidade mal orientada pelo judaísmo, mesmo sabendo que a Sua reputação não seria abalada perante o universo, não ficou “em paz”. Não cruzou os braços. O apóstolo Paulo desejou, ansiosamente, levar os judeus aos pés de Cristo. Não conseguiu e foi pregar aos gentios, mas ele não ficou em paz com a rejeição dos seus compatriotas (Rm 9:1-3).
Um cristão, portanto, não pode ficar em paz enquanto o “mundo cai”. Ainda que ele esteja seguro de que a queda do mundo não o afetará (e creio que seja a mensagem que a música quer transmitir). Penso que ele não poderá dormir em paz enquanto os seus irmãos correm perigo. Quando escrevi sobre isso no texto já citado penso que deixei claro que e a minha preocupação é que incentivemos o cultivo de uma atitude de comodismo diante das aflições dos outros.
Preocupa-me pensar na religião com uma fuga dos problemas sociais porque, se isso acontecer, a igreja perderá a sua razão de existir. Não será justo ela arrecadar dinheiro, que poderia ser gasto para investir no preparo de pessoas, e usar em benefício próprio. Não seria correto recrutar jovens e depois não devolvê-los preparados para ajudar os que correm perigo. A religião não pode ser uma fuga.
Sei que alguns pressupõem que a igreja tem somente que pregar o evangelho, mas um evangelho que não me torna humano não é útil. Ser humano, na minha perspectiva, é olhar pela “janela”, ver o que se passa lá fora, recolher-se por alguns momentos enquanto se traça um plano de ação e então abrir a porta e partir para a luta em favor do outro. É isso que eu chamo de “serviço” só oferece serviço quem não está “em paz”.
Voltando à música em pauta. Confesso que acho-a bonita e gosto de ouvir a repetição mas, como educador, sinto-me no dever de ir além de um simples expectador. Devo preocupar-me com as questões pedagógicas. Estou preocupado com os valores que ela transmite.
Campo Grande, 20 de outubro de 2011.
Antonio Sales profesales@hotmail.com