Translate this blog

sábado, 17 de novembro de 2012

A JUSTIÇA DE ABRAÃO



Ao ler  o meu texto, sobre a fé de Abraão, um esclarecido leitor, ao se deparar com a questão que sugere uma dificuldade em se optar com qual apóstolo concordar em relação à justiça, observou que não há disputa entre Paulo e Tiago porque tratam de momentos diferentes da vida do cristão. Segundo ele, Paulo fala do antes da conversão e Tiago do após a conversão. Nessa perspectiva, antes da conversão somos justificados (salvos) pela fé e depois da conversão somos justificados pelas obras.
É uma conhecida forma de ver os escritos desses dois apóstolos. Muitos pensam dessa forma, logo, não se pode simplesmente descartar a possibilidade de estarem corretos em sua interpretação. Podemos, porém, pensar diferente e fazer outra leitura dessa aparente discrepância.
Entendo que os apóstolos  estavam realmente falando de coisas diferentes, mas não de fases diferentes na vida de cada um. Estavam, no meu entender, falando de relacionamentos diferentes e não de etapas diferentes.
Um falou do relacionamento do homem com Deus o outro do relacionamento do  homem com os seus semelhantes.
Quando um  cristão está em seus momentos de reflexão espiritual, na sua câmara de oração   entra em cena a sua fé e ele pode sair de lá plenamente justificado por ela.  Se a sua relação com Deus foi estabelecida, se sentiu a plena aceitação da divindade pela sua entrega, se a sua vida adquiriu um novo sentido após esses momentos é porque a justificação ocorreu, e ocorreu somente pela fé. O seu mérito consistiu tão somente em aceitar a companhia da divindade, acolher a Sua oferta de perdão e receber a Sua paz inundante.
Paulo fala desses momentos sublimes e também da certeza que temos de que Deus nos ama e nos aceita. Essa disposição divina de nos acolher em Sua família Paulo chama de justificação e a nossa aceitação dessa proposta divina ele chama de fé.
Tiago falava das relações humanas, da religião vivida no cotidiano. Nesse contexto somos justificados ou condenados pelo que fazemos. As relações sociais são pautadas pelas regras vigentes na sociedade. Os relacionamentos humanos se pautam por essas regras. É pelo cumprimento das normas sociais que somos aceitos na comunidade, que conquistamos o respeito dos outros, que somos tomados como exemplos.
A justiça em Tiago é outra, é diferente da justiça nos escritos de Paulo.
Em Paulo justiça é sinônimo de salvação, tem a ver com a nossa aceitação por  parte de Deus. Em Tiago justiça é viver exemplarmente, é agir corretamente, é ser um religioso (cidadão, membro da igreja) exemplar.
Ao avançar um pouco mais nesse debate peço permissão ao leitor para ser um pouco repetitivo e expor aqui o que já escrevi em outros textos. Aproveito o ensejo para afirmar que a minha crença é que Tiago ao falar da lei não se limita aos dez mandamentos. Para ele a vida cristã vai além disso. O próprio Jesus afirmou que se a nossa justiça se limitar ao cumprimento da lei estamos perdidos (Mt 5:20). A lei dos dez mandamentos, composta em sua maioria por preceitos proibitivos, é uma lei cerceadora, limitante. É própria para imorais, indivíduos sem autocontrole que precisam ser vigiados, que precisam de controle externo.
O cristão deve sair do campo limitado da moral (obediência simples ao que está escrito) para o campo ilimitado da ética (liberdade para ir além do escrito). A moral cerceia buscando conservar, a ética liberta para transformar. O viver moralmente correto se limita a cumprimento da lei, o cristão a ético procura agir para melhorar as relações com os seus semelhantes e a vida de todos. O ético vai além da lei.
Um dos princípios basilares da ética prática é que antes de praticar uma ação devemos nos perguntar sobre as suas possíveis implicações no bem estar dos outros.
Entendo que a pessoa que pauta a sua vida pelos dez mandamentos ainda não se tornou cristã, ainda se enquadra no que disse o salmista que há pessoas que se assemelham aos irracionais que ainda necessitam de cabresto e freio para seguirem o caminho certo (Sl 32:9).
Tiago trata disso ao enfatizar a misericórdia como o padrão do julgamento divino. Ele entende que não basta não matar, não adulterar, etc., é preciso respeitar, acolher, apoiar. É preciso ir além da lei e aprender a amar (Mt 22:36-40), praticar a misericórdia (Tg 2:13) e viver exemplarmente.
Justiça, para Paulo, é ser aceito por Deus. Justiça, para Tiago, é ser honrado pelos homens. Para Paulo, ninguém depende da lei para ser justo. Para Tiago, justo é o que vive acima da lei, isto é, não subordinado a ela, mas tendo-a como parâmetro.
 Antonio Sales   profesales@hotmail.com
Nova Andradina, 17 de novembro de 2012.

3 comentários:

  1. Ola Professor, vou postar aqui ao inves de troca de email, quem sabe mais gente tambem possa colaborar com as linhas de pensamento.

    Tiago e Paulo estariam em contradição se estivessem falando da mesma coisa, mas há várias indicações no texto de que não foi este o caso. Paulo está falando da justificação perante Deus, ao passo que Tiago está falando da justificação perante os homens. Isso se evidencia pelo fato de que Tiago enfatiza que devemos "mostrar" (2:18) a nossa fé. Tem de ser algo que possa ser visto pelos outros em "obras" (2:18-20).
    Tiago reconheceu que Abraão foi justificado perante Deus pela fé, não por obras, ao dizer: "Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça" (2:23). Quando ele acrescenta que Abraão foi justificado "por obras" (v. 21), ele está falando do que Abraão fez que podia ser visto pelas pessoas, ou seja, do oferecimento de seu filho Isaque no altar (2:21-22).
    Paulo, por sua vez, está destacando a raiz da justificação (a fé), enquanto Tiago está destacando o fruto da justificação (as obras). Ambos, porém, reconhecem essas duas coisas. Logo depois de afirmar que somos "salvos pela graça, mediante a fé" (Ef 2:8-9), Paulo rapidamente acrescenta: "somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas" (Ef 2:10). De igual modo, logo depois de declarar que "não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou" (Tt 3:5-7), Paulo compele "os que têm crido em Deus [que] sejam solícitos na prática de boas obras" (Tt 3:8). A relação entre Paulo e Tiago pode ser resumida da seguinte maneira:

    PAULO
    Justificação perante Deus
    A raiz da justificação
    Justificação pela fé
    A fé como produtora de obras

    TIAGO
    Justificação diante dos homens
    O fruto da justificação
    Justificação pelas obras
    As obras como aprova de que há fé

    Rudinei Cardoso

    ResponderExcluir
  2. Excelente contribuição Rudinei. O debate está aberto.

    ResponderExcluir
  3. Uma leitura desatenta do meu texto e do comentário do leitor Rudinei pode deixar a impressão de que estamos falando a mesma coisa, mas não estamos.
    Para ele a justiça das obras (em Tiago) está subordinada à justiça pela fé (segundo Paulo).
    Na minha compreensão são coisas distintas. Uma pode ocorrer sem a outra. Uma pessoa pode ser justa perante os homens e não ser justa perante Deus ou pode ser justa perante Deus e não ser justa perante os homens.
    O exemplo do ladrão que se converteu na última hora (Lc 23:41-43) é um caso extremo de alguém justificado pela fé e não pelas obras. Há outros casos. O próprio Jesus que foi morto como malfeitor não foi tido como justo perante os homens do Seu tempo.
    Portanto, no meu entender, Paulo e Tiago tratam de coisas distintas. Tiago enfatiza o viver humano com decência, com moral e Paulo enfatiza a salvação, a conversão a aceitação do homem por Deus.
    As obras, no meu entender, não provam a fé embora a fé que resulta em salvação produza obras. As obras da fé, no meu entender, são mais amplas do que as obras segundo Tiago, embora estas possam estar incluídas.
    No meu entender, alguém que luta no laboratório para descobrir um remédio contra um mal que afeta a humanidade está produzindo boas obras e não é, necessariamente, uma pessoa justificada pela fé.
    Uma pessoa que arrisca vida para evangelizar um povo bárbaro é uma pessoa de fé, mas pode não produzir nenhuma boa obra na perspectiva das pessoas com que ela trabalha.
    Temos o caso recente de dois missionários prebiterianos que foram presos no Senegal porque ao abrigar crianças abandonadas cometeram o "crime" de pregar o evangelho para elas. São justos perante Deus e são injustos perante os homens.

    ResponderExcluir