Os legalistas, aqueles
que não conseguem pensar na salvação sem a presença da lei, até dizem que a salvação
é pela graça ou uma dádiva de Deus. Mas, concluem eles, a lei é o instrumento
para nos conduzir a Cristo, portanto, necessária para a salvação. Variando um
pouco outros afirmam que a lei é uma prova da nossa conversão. Na realidade o
discurso muda muito pouco, conforme as circunstâncias ou conveniências, mas o
significado é o mesmo: sem lei (antes ou depois) não há salvação. É bom lembrar
que lei, para os legalistas, praticamente se resume aos Dez Mandamentos.
Penso diferente. Penso
que, simplesmente, não há relação entre lei e salvação ou lei e graça. Salvação
tem a ver com a nossa relação com Deus e a lei, com a nossa relação com os homens.
Graça é Deus nos aceitando e a procura pela lei é um ato nosso, salvos ou não, procurando
viver bem uns com os outros.
A graça, no meu
entender, tem poder transformador. Ela, sem dúvida, desperta em nós o desejo de
viver bem, mas não é a única fonte desse desejo. A educação pode nos
proporcionar isso também. Ouros fatores também podem nos motivar a um viver
harmonioso. Mas nós não precisamos da lei (nenhuma lei) para mostrar que
respeitamos o outro. Podemos simplesmente respeitar. Em casos mais sensíveis
podemos perguntar a ele (ou observar) como espera ser respeitado. Podemos
simplesmente tratar o outro com o mesmo respeito que gostaríamos de ser
tratados
A lei entra nos casos
de dúvida, quando não há oportunidade de perguntar ou observar, quando os
limites não estão claros ou os direitos não estão bem definidos.
Como, por exemplo, quando
compramos um terreno, pretendemos construir e não queremos prejudicar o vizinho
construindo o muro no terreno dele. Nesse caso a escritura, que representa lei,
vai nos orientar sobre o local onde passa a linha divisória. Ela não vai nos
dizer que precisamos respeitar o outro, pois, disso já estamos inteirados; vai (com
a ajuda de instrumentos) nos dizer onde está o limite.
Por vezes vamos de
carro por uma rua e chegamos ao cruzamento juntamente com outro carro quem vem
numa direção perpendicular à nossa. Nesse caso, um deve esperar o outro passar.
O que fazer? Olhamos na placa, que representa a lei, e a decisão estará
definida. Se o outro avançar primeiro não nos sentiremos ofendidos porque a lei
definiu que, naquele caso, ele tinha prioridade.
Essa é, no meu
entender, a função da lei: mostrar onde estão os limites.
Quando visitei Machu
Picchu, no Peru, vivi uma experiência interessante. Do povoado de Águas Calientes
na base da Montanha Velha (Machu Picchu) os turistas são transportados de micro-ônibus
pela encosta acima por uma estrada estreita que permite o cruzamento de dois
veículos apenas em alguns pontos específicos. Os veículos que descem esperam para
serem ultrapassados pelos que sobem exatamente nesses pontos.
Os horários de partida
de Águas Calientes, que dependem do fluxo de turistas, são incertos e impedem
que sejam prefixados em lei os horários e locais exatos em que os veículos que
descem devem esperar pelos que sobem. Os coordenadores do tráfego, no entanto,
encontraram uma forma alternativa inteligente de proporcionar segurança e conforto
no transporte dos passageiros. Cada micro-ônibus é equipado com um aparelho de radio-transmissão
e dois tripulantes: o motorista e o radio-operador. A comunicação constante
entre os radio-operadores mantém os motoristas informados sobre os pontos e horários
de cruzamentos.
Quando há boa vontade a
lei pode ser flexível. A lei deve ser dura quando há barbárie. A lei é necessária
onde não há boa vontade entre os homens, ajuda onde há pontos não suficientemente
claros e pode permanecer oculta onde a graça divina atua em sua plenitude.
É a tentativa de
harmonizar graça e lei, de fazer a lei ser necessária onde a graça atua que caracteriza
o legalismo.
Há uma passagem do
apóstolo Paulo, um ferrenho defensor da dissociação entre lei e justificação ou
lei e salvação, que merece ser analisado. Paulo debateu fortemente esse tema com os gálatas.
Aos Gálatas (Gl 3:23-25) ele escreveu:
“Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados
debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.
De maneira
que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé
fôssemos justificados; mas, depois que a fé veio, já não estamos debaixo de
aio, porque todos sois filhos de Deus, pela fé em Cristo
Jesus”.
Entendo que Paulo estava dizendo que em um ambiente
onde a barbárie impera a lei se faz necessária e mantém o homem sob controle
até que Cristo entre em sua vida e produza a transformação do viver. Ela foi necessária,
diz ele, para guardar o homem da depravação total ou da autodestruição até que ele
e se encontrasse com Cristo. No seu entender a lei nos protegeu até que nos
tornássemos filhos de Deus.
Uma vez
transformados, porém, não mais necessitamos da lei para nos controlar.
Necessitamos da lei para nos orientar nos casos em que os limites não estão bem
definidos.
Esclareço que, se para os legalistas a lei se resume
aos Dez Mandamentos com seus impedimentos bem definidos, para mim lei é toda
instrução que estabelece direitos e deveres. Se para eles é um conjunto de regras
fixas, para mim é qualquer manual de tira-dúvidas.
Antonio Sales
Campo Grande, 20 de dezembro de 2013.
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