Já dissemos que segundo nosso entender Paulo não está discutindo a lei e sim a nossa relação com ela. Quando essa relação está enferma, porque o legalismo se instalou, não é fácil discuti-la e qualquer afirmação que se faça o legalista pergunta: “e a lei onde fica?”. Paulo se imagina confrontando com esse tipo de pergunta e responde: a lei fica no lugar que Deus reservou para ela: orientar.
Entendo que a lei pode exercer varias funções distintas (lembrando que lei tem sentido amplo, incluímos as convenções na categoria de lei).
Uma função é coibir, inibir a violência, o abuso ou incômodo. Essa função fica explícita nos preceitos: “não matarás”, “não adulterarás”, “não estacione na calçada” etc. Explicitam o que não deve ser feito.
Outra função é orientar. “Tudo que quereis que os homens vos façam fazei-vos a eles também”, a placa de “pare” ou o triângulo na entrada de uma via preferencial e a presença de um cesto de lixo nos falam de orientação sobre a forma correta de agir ou sobre o que se espera de nós. Orientam sobre quais são os limites da nossa liberdade em determinadas circunstâncias ou melhor, onde termina o nosso direito e começa o do outro em situações em que tais direitos não estão explicitados. Orientam-nos quando estamos na “linha cinzenta”.
Aja com integridade, respeite os sinais de trânsito, seja prudente no falar, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, são preceitos que indicam uma terceira função da lei: estimular certas práticas.
Em suma: as regras existem, principalmente, como diretrizes para facilitar o relacionamento entre as pessoas. Os preceitos coibitivos são para os levianos, os marginais, e não para os cristãos.
Quando em Rom. 3:31 Paulo afirma que a fé não anula a lei, imagino que ele está pensando na segunda e na terceira função da lei
Não uso café por decisão pessoal e desde a adolescência. Algum tempo depois me tornei adventista do sétimo dia. Segundo as orientações recebidas uma das normas da igreja consiste em proibir o uso do café. Mas essa norma não me afetou. Havia abandonado antes, logo eu não estou debaixo dessa regra. No entanto, mesmo no meu caso a regra não perde o valor. Para mim ela foi confirmada. Agora tenho duas razões para não tomar café. A norma não me serve como proibição, mas serve como orientação. Como proibição, estou livre dela, como diretriz sou aliado dela.
Para o apóstolo, o cristão não obedece a lei como proibição mas como orientação. De fato, penso que não faz sentido dizer para um cristão que ele não deve matar, roubar ou praticar coisas do gênero. Um cristão precisa de diretrizes para facilitar o seu relacionamento com os outros, mas não de um vigilante externo para impedi-lo de agir inconvenientemente (1 Cor. 13:4). Precisa de placas orientadoras às margens do caminho e não de um cão feroz depois do muro.
O cristão busca compreender, distinguir a diferença entre tolerância e permissividade, distinguir entre verdades e mitos, definir os limites da sua liberdade, afastar-se do bizarro, agir com decência e zelar pelo bem (1 Cor. 13:5). E não há lei contra essas coisas, não há lei que proíba essa forma de agir. Logo, o cristão está livre da lei (dos preceitos inibidores), é um aliado da lei (dos preceitos orientadores) e é um promotor da lei (dos preceitos estimuladores das boas práticas).
Outros aspectos da vida cristã focalizados por Paulo (Rom. 6:19-23) são a justificação e a santificação. Justificação, no meu entender significa nova oportunidade. Significa Deus dizer: esqueça o que você fez e comece nova vida. Experimente de outra forma.
Santificação, por sua vez, é um termo relacionado com educação, com o preparo para a vida cristã. Preparo para ser membro de uma nova comunidade, para viver essa nova vida. É preciso ensinar. Esse ensinar isso não é necessariamente a lei dos dez mandamentos. Tem pessoas que nunca pensaram em praticar atos extremos. O que elas não sabem é serem corteses, tolerantes, apoiar o fraco, ajudar quem está com problemas de ordem moral ou espiritual.
Precisamos ensinar. Mas, às vezes dogmatizamos tudo, ficamos repetindo normas ao invés de produzir reflexões. Condenamos ao invés de ensinar. Confundimos ao invés de esclarecer. Desqualificamos as pessoas ao invés de as qualificarmos pela palavra de orientação.
Texto produzido em fevereiro de 2010 e incorporado ao livro: “ O Homem, a Lei e a Graça em Romanos” publicado em abril de 2011.
Antonio Sales
profesales@hotmail.com